29.6.04

metáfora

o cântaro e a fonte
encontro singular
ele oferece o seu vazio
e ela a sua plenitude
depois o cântaro se vai
mas volta novamente
na troca intermitente
formando estranho par
um dá eternamente
e o outro - indecente
se embebe sem parar
existem pares assim
também no universo real
que subsistem inclementes
até o pote se quebrar


Um história qualquer

Minha alma foi teu consolo
onde derramaste tuas lágrimas
procuraste tua segurança
clareaste teus escuros
Meu corpo foi teu país
onde hasteaste tua bandeira
traçaste tuas fronteiras
e encontraste tua luz
Entreguei-te minha esperança mapeada
em cada linha do meu corpo
em cada nuance da minha alma
Não traduziste minhas marcas
não refletiste nos meus verdes
não emergiste nos meus sonhos
A luz se apagou
meu corpo se fechou
minha alma se rendeu

Dei-te adeus,
só meu sonho não percebeu


25.6.04

Apenas amor

Alcance-me com teu abraço
Aperte-me com tua fúria
Faça-me escrava do teu querer
Torne-me incoerente
Inconstante
Insana
Vire-me pelo avesso
Corte as minhas amarras
Empreste-me asas
Para jamais deixar de ser
Apenas amor


ansiedade

coração partido
de saudade ingrata
não, não houve ruptura
eu não a conhecia
e me deleitava na expectativa
de encontrá-la ao menos em delírios
os olhos ressequidos de arregalar ao vulto seu
que é o colírio e linimento
minha angústia e meu tormento
me vejo dissecado
e alguns pedaços já desgrudam de mim
aspiro sua água e o seu leite, o sangue e seu azeite
me hidrate, esbanje e submerja
me livra dessa fome e dessa sede
até que me embeba do seu mel

(meu post de 01/10/02 no blog Aos 4 Ventos)


24.6.04

fusão

sem querer foi sendo
adentramos sem planos
e quando percebemos
até o fugir tentamos
mas não conseguimos
e nos embrenhamos
cada vez mais fundo
em mútuos oceanos
e ao submergirmos
nunca mais voltamos
agora não sou
e também não és
nós apenas somos


23.6.04

Silêncio do distrato

Ele, ao lado esquerdo da mesa. Ela, à sua frente. Entre eles, um contrato. A vida dele estava naquele contrato a ser assinado. A vida dela estava em outro contrato já assinado. A vida deles dependia de mais uma assinatura. Dois anos no interior do Pará era o passaporte que ele precisava. Dois anos no interior do Pará seria o fim da carreira dela. Ela o olhou nos olhos. A decisão já fora tomada. Levantou-se e deu-lhe as costas. Com mãos firmes ele assinou sua nova vida. Em silêncio ela foi dormir no quarto do filho. Em silêncio ele começou a fazer as malas. No dia seguinte não haveria a vida deles. Haveria ele. Haveria ela. E haveria o filho dela. Do amor, apenas o silencioso distrato.


22.6.04

Palavra sem semente

Na definitiva mente
a definitiva palavra
não tem sabor
não tem cor
semente
crua
pobre
demente
Definitivamente
na definitiva mente
a palavra sem semente
é Amor


21.6.04

alça de mira

Artesão primitivo da palavra
Tateia e ousa rumos impensados
Peito aberto arfante exibido
Tensão do arco
Há outras miras na aljava
São apenas um: arqueiro e seta
Retesa ao máximo dispara
Singram sangrando o ar rompido
E assesta a lança o coração partido
Verte a lava e o sangue avermelha a tez
Na pele desnuda extrema palidez
É a morte
O grito e o silêncio
Sina da vida, sorte
Já não existe dor
Ao fundo ouvem-se lamentos
Primeiro plano latente
Algazarra infantil indiferente
E no embaçado olhar defunto
Jaz inútil a última das lágrimas
Fim decadente que não cabe
Revolve as cinzas mal acaba tudo
E a esculpida palavra expressa
Recomeça ao cinzel miúdo

(ps. transcrito do meu blog
H@ Vida Depois dos 40
publicado em 02/12/02)


20.6.04

Poeta de um tempo perdido

Pasta debaixo do braço, ele se arrastava ladeira acima. Outra vez seus originais eram recusados. Poesias que ele parira com amor. Eram suas companheiras de muitas noites solitárias.
As recusas eram sempre gentis, mas os olhos que recusavam mostravam completa indiferença. E um certo desinteresse pela história que ele ajudara a construir.
Ele se sabia contundente. Sua vida sempre fora de contundências explícitas. Doía-lhe ainda pensar nos companheiros mutilados. Nas companheiras sodomizadas. Nos becos onde dormira tantas vezes. Nos gritos que eram calados pelo medo. Nos olhos que sonhavam com uma liberdade utópica.
Sua poesia era ele. Havia um certo lirismo, sua alma sempre festejara a vida. Mas havia sangue. Havia lágrimas. Havia amor. Havia morte. Jamais negaria a si mesmo e a sua história.
Sentia-se poeta. Mesmo que apenas ele se soubesse poeta. A poesia seria outra vez guardada até que outra vez ele criasse coragem para libertá-la.
O poeta não morreria. Apenas descansaria para criar vida nova.


19.6.04

parceiros & parceria

"Quebro o rito e o ritmo, mas faço uma justa homenagem a Luis Tarciso, a quem sequer posso chamar de parceiro, posto que é meu mestre..." Regis

Peço desculpas a todos os leitores mas não pude evitar de manter a quebra do rito e ritmo iniciada pelo Regis e vou me pronunciar sobre isso ainda uma vez - e prometo que depois vou apenas prosear e poetar por aqui.
Amigos Regis, Loba e Jeanete. Aqui somos todos proseadores e poetas. Por isso não me deixem assim encabulado. Relutei muito em aceitar ser chamado poeta até que me identifiquei completamente com a perfeita definição de Pessoa para quem o poeta é um fingidor. Desde então me fiz poeta e armado de uma tosca poesia vou brandindo palavras às vezes dissonantes, escrevendo sobre a minha realidade ou dissertando sobre minhas fantasias. Mas sou apenas um primitivo, um leigo e neófito nesse mundo virtual e tão rico de pessoas maravilhosas como vocês. Então pra mim, o maior ganho é esse contato e interação que a internet nos permite. Definitivamente não sou mestre - me alegro muito se puder ser admitido como um de seus pares. Cada um de vocês tem um encanto característico e único - os escritores e os leitores que nos brindam com sua audiência. Não quero ser e não sou ingrato, mas não me sinto confortável com essa distinção imerecida - nunca fui mestre e nem serei - e, reafirmo, a grande distinção para mim é a de ser aceito e tratado como um dos seus pares.
Um fraternal abraço
Tarciso


17.6.04

Amor solitário

Sinto-te em mim. O desejo modela teu corpo na minha saudade atemporal. Cubro-me com os beijos que tua boca me negou. Meus braços se movem num abraço que me circunda. Sinto-me aos poucos. Meus sentidos brilham intensamente nas entrelinhas da realidade. Trago-te para mim.Tenho-te novamente. Entrego-me à tua lembrança e sou carinhos que percorrem fios e umidades. Minhas mãos, amante lésbica, deslizam pela pele sedenta. Deixo-me moldar por dedos ávidos que passeiam doidamente por meu corpo. Sinto a suavidade quente da tua língua descobrindo as minhas cavidades. Redescubro o teu prazer. Desmancho-me em líquidos e a vida volta a me preencher. Estou viva. Já posso chorar.


plenitude

a pele é de veludo
tépida e sedosa
gostosa de tocar
expele aquela luz suave
expande as sensações
entontece a visão
num halo envolvente
e já não se vê nada além
dois corpos castos e desnudos
em posição de amar no chão
entregam-se aos caprichos da libido
nada é proibido
tudo é sedução
o gosto
o cheiro
a troca dos gemidos incontidos
e o gozo longamente adiado
é finalmente consentido
explode em lavas
e tremores
olores conhecidos
invadem o recinto
abafam os sentidos
na ânsia do prazer
ganhando ao perder
um ser no outro ser
minutos infinitos
de paixão


16.6.04

gratidão das pétalas

catava uma a uma as pétalas caídas
a exalar seu último estertor de vida
sorvia em deleite cada aroma
e cuidadosamente as depositava num alforje
que diuturnamente aos ombros carregava
perambulava perdido no tempo das lembranças
as crianças interrompiam seus folguedos
e o rodeavam em grande alarido
às vezes derrubavam-no em brincadeiras
e ele sorria
há muitas décadas passadas
fora uma delas - ainda era
e eternamente o seria
não fosse o impacto
o motorista embriagado
a decretar-lhe o fim da vida
agora jaz em silêncio e calmaria
seus despojos repousam num jardim
e a tumba permanece sempre ornada
pela multidão das suas pétalas caídas


Tempo de viver

Aconteceu de repente. Uma pétala caiu sobre sua cabeça. Vermelha. Viva. Risonha. Voltou no tempo e viu-se sentada à mesa. Uma alegre mancha rubra se espalhando pela toalha branca. À sua frente, olhos castanhos e brilhantes lhe sorriam. Era dia de despedida. Mas era despedida feliz. Ele conseguira a bolsa e rumaria pra realizar seu sonho. Comemoravam a alegria dele. A saudade dela ficaria pra depois. Foi a última vez que o viu sorrindo. Foi a última lembrança dos olhos felizes. No reencontro, os olhos estavam fechados. Uma rosa vermelha de pétalas aveludadas fora seu último presente ao amor que partia. Da rosa, restava uma pétala dentro do livro de Drummond. Dele, restavam as lembranças de um amor que se eternizara. Ainda havia dor. Mas as flores continuavam a sorrir em seu jardim. Outra rosa de pétalas vermelhas nascera. E uma nova pétala seria juntada à outra. A vida se anunciava. Era tempo de abraçá-la.


15.6.04

Naquele dia, alguma coisa estranha agitou-se dentro de mim.
Era como se uma rosa não abrisse lentamente, expondo uma a uma,suas pétalas aveludadas. Ao contrário, era como se ela as introjetasse para dentro de si, e para dentro do meu corpo. Rubras, maravilhosamente rubras.
Eu ria, e meu riso transformava-se de imediato, nos acordes suaves de uma flauta doce.
A neve passeava pelo campo, como o mais alvo, puro e virginal algodão.
E o sol que surgiu naquele dia, não era simplesmente o sol. O astro rei a iluminar e aquecer a terra. Mas, a mando do Criador, ele era o calor do que me aquecia o avesso. A chama farta amor, que aquece o coração dentro do peito.
Agora, sempre que meu corpo repousa amoroso, sobre o teu corpo acalmado, eu lembro.
Lembro bem: foi num vinte e quatro de junho, no meu décimo quarto aniversário,que teus olhos encontraram os meus, pela primeira vez.

Texto de Jeanete Ruaro


14.6.04

nebrasca

amanhã
silêncio branco
opondo-se à algazarra que foi ontem
hoje o mundo está mudo
suspensos brindes e tilintares
nenhum afago ao alcance
e o crepitar da chama
é apenas miragem
vertigem
ilusão
ou serão apenas bobagens
devaneios sutis na escuridão
reféns da roda do tempo
inclemente indiferente
pare ou dispare
um coração


13.6.04

Presente de um futuro em branco

Minhas palavras emudeceram
calo-me diante da minha própria ignorância
olho o nada em busca de respostas
apenas o silêncio cai sobre mim
Sou sentimentos que me olham atordoados
sou a pergunta que não quer calar
estou presa ao meu grito que cresce mudo
Contemplo a mim mesma: ainda sou eu
olhos sujos de lágrimas secas
coração calado das esperanças que se foram
mas ainda sou eu
Não me perco e essa é minha maior dor
não sei me esquecer
não sei me negar
Estou no presente de um futuro em branco
Estarei no silêncio ilhado do amanhã
mas estarei vida
ainda que muro de inscrições apagadas
E de você
o que sobrará?


12.6.04

fantasia

pétalas da infância
promessa feminina
mulher desabrochada
em rosa de aroma delicado
nas lembranças de menino
a menina das lembranças
primeira paixão nunca esquecida
que ela nunca soube
e era tão bonita
vestida de anjo
asas esvoaçantes
planando no palco
dos meus sonhos
não é difícil voltar
no plano da memória
reinventar a história
que não houve
mas podia
e deveria ser tão linda
como ainda é em fantasia!


11.6.04

Amor reinventado

Às vezes preciso reinventar o amor para aceitar a necessidade de amar. Então busco flores e com elas tento me encontrar. Lembro a infância. Pétalas do mal-me-quer fazendo minhas escolhas. Era tão fácil sonhar. Cobria o chão do quarto com os sonhos de menina. Espalhava sobre eles fantasias de estrelas. E das estrelas nascia um menino. Embolado e embalado o meu menino dormia em meus braços. Era o sonho da menina que intuía a mulher. Mulher nasce para ser mãe. Será? Mulher nasce para ser mulher. O resto é opção. Menos amar. Amor invade. E é sempre tão grande que é preciso ser escutado no silêncio, sentido na ausência, vivido na memória, multiplicado no outro. Reinvento o amor para saber vivê-lo em toda sua intensidade.


10.6.04

requiem

à cova rasa
pouca terra e peso
arfava ofegante
nauseado e confuso
errante sob a lama
tamanho desconforto
razão do infortúnio
revelou-se só depois
jazia vivo em ânsias de viver
sustentado por um sopro
bruxoleante e pálido
um morto vivo para o amor


7.6.04

Sobrevivência

Na mente: o presente
números e inúmeros apelos
tempo de buscar segurança
vida que se vai sem pensar
No corpo: o passado
saudade de beijos lentos e solfejos
tempo de amor derramado
morte que levou o amar
Na alma: o futuro
enfrentar o tempo sem medo de ousar
tomar do tempo o direito de amar
esperar sonhar realizar


6.6.04

arraial submerso

há muitos quilômetros de tudo
numa profundidade insustentável
onde fui esquecido
nem eu sei o endereço
só tenho de mim a superfície
e o mergulho pode ser sufocante
tento ser anfíbio ao inverso
e despejo em versos
tudo o que me afoga
enquanto aspiro a mão que afaga
e fujo ao frio sinistro das adagas
que penetram a alma sem cortar
mas nada vai além de fantasia
porque o concreto deste dia
me chama ao compromisso
balbucio
penso
emudeço
e nem há mais o que falar!!!
...


4.6.04

Gerando vida

O vento não cansa
levanta as folhas secas
corre solto entre o capinzal

A chuva vem devagar
beija a terra
derrama-se lentamente pelo umbral da porta

Da janela
olhos famintos vêem a água sumindo pelas fendas do chão
No umbral
mãos secas juntam as gotas e alimentam-se da esperança


3.6.04

panis et circus

corre risco a terra bruta
nas florestas exploradas
à humana perversão
selvagem fascinação
do ego que rege o homem
mãe natureza respeita
os ciclos que se repetem
porque tudo um dia nasce
envelhece depois morre
semente morta revive
fecunda ao cio da terra
rasgada ao ventre germina
o trigo que se recolhe
milagre sustenta a vida
em fogo que não consome
e humilha a constatação
da injustiça sem nome
tanta fartura de pão
e gente a morrer de fome!!!



2.6.04

Ciclos

Toda palavra
Um sentimento
Todo sentimento
Um momento
Todo momento
Uma esperança
Toda esperança
Um recomeçar
Todo recomeçar
Uma vida


1.6.04

ânsia das águas

andarilhos despojados
compõem as caravanas
sinuosas no deserto
perscrutando oásis
na busca das águas
velejadores indômitos
afrontam oceanos
de inquietas ondas
perscrutando terras
na ânsia das águas
andarilho e velejo
em dunas da imaginação
e ondas cerebrais
à sede esmoreço
e me liquefaço
sonhando um recomeço
após as chuvas de outono
vertidas infinitamente em gotas
temporais, garoas e lágrimas