13.1.05

vale-um-conto?!

A culpa não foi de Eleonora. Sabe quando a pessoa se encontra no lugar errado, na hora errada e com a pessoa errada? Lugar errado?!: o Hotel Netuno Blues. Hora errada?: 8 da manhã. Quanto à pessoa errada - talvez seja melhor examinar isso mais a fundo - mas, enfim, tratava-se de Alfredo, seu ex-marido, atualmente amasiado com Justine.
Eleonora, definitivamente, é aquele tipo de mulher que se dá ao respeito. Empregada registrada no quadro de funcionários do hotel - na função de camareira, ganha a merreca de 540 reais por mês e cumpre uma jornada diária mínima de 12 horas e tem que caprichar muito pra conservar o emprego, principalmente no chamado período de experiência próximo de concluir. Uma hora e meia depois de chegar ao serviço, lá estava ela atendendo ao chamado urgente do quarto 503 que reclamava sobre uma porta de banheiro travada. Que o primeiro nome do hóspede informado pela portaria lhe despertara emoções contraditórias não podia negar. Mas que ele fosse o Alfredo - ela o chamava pelo diminutivo "Dinho", isso nunca poderia imaginar. Afinal devem existir milhares de Alfredos na cidade e o sujeito em questão, tinha se mudado para o Rio desde a separação de ambos. Mas não é esse o fio condutor da estória. O que importa é que tampouco Alfredo jamais poderia imaginar que sua formosa ex, fosse agora uma humilde servente de um hotel 3 estrelas. Recém saído do banho lembrou que no bolso da calça que havia ficado no banheiro estavam todos os seus documentos, dinheiro e as anotações de endereços dos clientes a visitar naquele dia calorento. Meio a contra-gosto aceitara que Justine estivesse com ele em São Paulo aquele dia - apesar do contratempo que isso causava aos seus compromissos de vendedor. Mas ela já ligara do aeroporto e portanto logo deveria chegar ao hotel. Só concordara com essa vinda para não criar dificuldades com Justine, que tirando o ciúme doentio e algumas atitudes intempestivas, era de resto uma excelente companheira. Nesse quesito quase podia se equiparar a Eleonora. Ah Eleonora!... Mas esta já fazia parte do passado. Boas lembranças, alguma saudade - mas algo definitivamente morto e enterrado. O relacionamento durara 16 anos e sem que se soubesse exatamente os porques, - terminara por pura inanição e então ambos decidiram trilhar em solo suas vidas. Nem os dois filhos já adolescentes pareceram sofrer maior abalo porque não tendo visto nenhum atrito grave entre os pais, para eles era como se aquele casamento não tivesse sequer se dissolvido. Em todo caso, ficaram com a mãe e viam o pai com alguma regularidade. Visitavam-no mesmo, esporadicamente, no Rio de Janeiro para onde se mudara. Eleonora que recebia a pensão de mil reais não estava dando conta das despesas e resolvera procurar um emprego pra reforçar o orçamento. Os garotos também tinham arrumado um empreguinho pra sustentarem seus gastos pessoais e a vidinha ia sendo levada dessa forma. Mas Eleonora não era de dar o braço a torcer e contar pra todo mundo que agora era camareira - tinha praticamente concluído a faculdade de filosofia e a respeito de qualquer dependência sua em relação ao gênero masculino ela era dotada de uma retórica cartesiana e uma prática platônica. Ou seja, para ela homem doravante, só em sonhos. E o homem dos seus sonhos jamais deixara de ser Alfredo. Isso descobrira algum tempo depois da separação... mas em relação a isso já não havia nada mais a fazer. Além do que o orgulho não a deixaria jamais confessar tal fragilidade. E já estamos novamente descarrilhando o trem da estória... Pra resumir: Alfredo deixou a porta aberta para Justine entrar assim que subisse até o 5º andar e foi tentar de novo desemperrar a fechadura da porta do banheiro, não sem antes voltar a reclamar na portaria e pedir a assessoria de alguém pra ingrata tarefa de resgatar seus pertences. Enquanto - de costas para a entrada - fuçava desesperado tentando abrir a porta, Eleonora, sem reconhecê-lo aproximou-se e juntos começaram a forçar o fecho enguiçado. Nenhum conversa trocaram e depois de dois ou tres minutos de inútil tentativa ele acabou se irritando mais do que já estava - deu um passo atrás e avançou com os ombros à porta. Porta de banheiro de hotel geralmente não é lá essas coisas e com aquela não foi diferente. A tranca cedeu, a porta abriu e ambos foram juntos ao chão - desesperadamente procurando algo em que se segurar. Não encontrando nada melhor acabaram se engalfinhando sem querer um no outro. Se o non sense da situação já não estivesse no limite do absurdo - pior ficou quando ambos finalmente se reconheceram e antes mesmo que pudessem esboçar qualquer reação - eis que surge à porta principal - imaginem quem... - acertou quem imaginou Justine. E não foram precisos mais que 10 segundos para que o ciúme doentio de Justine encaminhasse sua fértil imaginação a deduzir o que deveria estar se passando. Seus olhos doces se injetaram de sangue, ela arrancou a toalha úmida que envolvia a cintura de Alfredo - deixando-o boquiaberto e nu e com a mesma toalha aplicou uma tunda em Eleonora que se abaixava procurando fugir dos golpes. Nenhum dos dois ex tentou explicar qualquer coisa a Justine. Ambos sabiam que seria absolutamente inverossímil qualquer argumento. Justine virou-se bufando e bateu violentamente a porta do quarto ao sair dali - e não só dali - mas também da vida de Alfredo para sempre... Marido e Mulher - afinal nem o divórcio ainda tinha saído - se olharam envergonhados - mas sem nenhuma acusação um ao outro. Ele ainda estava bonitão ela pensou intimamente e sentiu aquele mesmo antigo arrepio percorrer-lhe a espinha ao ver de novo à sua frente um homem nu - o seu homem - depois de 22 meses e 15 dias - ela contava e recontava milimetricamente o doloroso tempo de separação. Alfredo, mesmo enrubescido pela vergonhosa situação, percorreu Eleonora dos pés à cabeça e não pode deixar de admirar a sua beleza ainda intacta e apetitosa. Eleonora parecendo não acreditar no que via e sentia, fechou os olhos e apertou-os chacoalhando a cabeça por um breve instante e percebeu em seguida os braços de Alfredo enlaçando-a com suave firmeza. Não pode e nem quis esboçar qualquer reação. No instante seguinte seus lábios se tocaram e sentiram novamente aquele mesmo fogo da paixão que os consumira no início do relacionamento. Nenhum dos dois sabia naquele instante como seria o momento seguinte, o dia seguinte, a vida que seguiriam - mas ambos pareceram abrir mão do comando naquela situação inusitada. Seguir o instinto pareceu-lhes mais sábio. Sem qualquer plano e sem nenhum projeto, apenas amaram-se daquela forma incandescente de dois amantes inconsequentes, tendo unicamente a luz do sol por calorosa testemunha...


PS.: esse texto é pura ficção e qualquer semelhança com nomes, lugares e situações não passa de coincidência. Publiquei-o originalmente no meu blog "H@ Vida Depois dos 40", em 28/02/2003


10.1.05

linhas e anzóis

quisera fechar-me em conchas
mas uma invasão sutil
inundou-me a alma
e transbordei de afetos
seria uma mulher
seria um ser marinho
sereia?!...
adentrou-me à veia
causando rebuliços
reviravoltas e náuseas
rompeu o meu completo auto-domínio
e dominado sigo intenso
respiro à liberdade extenuado
o sangue circulando em frenesi
refém do teu perfume e fascinado
em tuas mãos a linha, o anzol
e eu todo contente do outro lado
fisgado feito um mero lambari


7.1.05

Zé dos Peixes

Muitas vezes, em minhas pescarias despretensiosas pude admirar a paciência do velho pescador. Costumava observar a sua despojada exposição ao causticante sol-a-pique. Acho que não fazia caso do calor porque raramente eu o vi pescar nas prazeirosas sombras das árvores não muito frequentes do Panema. Usava apenas um chapéu de palha por proteção e roupas rotas pelo intenso uso. Vez em quando fisgava um lambari, um tambiú, um mandizinho chorão. Nada que fizesse volume no bornal surrado. Nesses momentos seu corpo se retesava na barranca do rio e se percebia claramente o seu prazer à caça dos minúsculos peixes fisgados. Não soube muito sobre ele, a sua atenção à pesca não lhe permitia entabular grandes conversas beira-rio, o seu mais frequente habitat. Gostava que o chamassem simplesmente 'Zé dos Peixes'. Era viúvo e tinha 3 filhos que moravam na cidade e que raramente o visitavam na fazenda onde ele estivera morando desde a mais tenra infância. No último final de ano, cumprindo a sua rotina diária, ele foi ao rio Paranapanema para a sua pescaria miúda. Pelo volume já mau-cheiroso do seu bornal, aquela parece ter sido uma das melhores pescarias do ano. O rio andava meio repontado e muitos bagres foram fisgados. Não se sabe exatamente como aconteceu, mas ele foi encontrado logo de manhã, sentado num dos seus lugares prediletos na barranca do rio, em estado de rigidez cadavérica. Supõe-se que tenha morrido na tardinha da véspera. Pela sua expressão - um esboço de sorriso - é muito provável que tenha fisgado um daqueles lépidos peixinhos prateados ao dar o seu derradeiro suspiro. Descanse em paz, seu Zé dos Peixes.


6.1.05

calada

certa palavra ouvida
não foi dita nem pensada
pois morreu dilacerada
antes de ser concebida
nunca será pronunciada
foi velada no silêncio
e jaz quieta na calada