21.7.04

Felicidade sonhada

Ontem senti-me embalada
Lacrada com laço de fita
Pronta para ser presenteada
 
Vida pulsava no presente:
amor latejante
carinhos vicejantes
desejos escaldantes
 
A espera fez-se estrada comprida
Acordei embalagem sem vida
A felicidade foi apenas sonhada


15.7.04

palavra vazia

tua palavra
(trans)bordando poesia
germinou fértil
na alma em reticências
inclemente
teceu texto entre vírgulas
coseu sonhos sem acentos
recriou adjetivas fantasias
até que descoberta
caiu substantiva
nas surdas linhas
da vocativa desilusão
e agora jaz subordinada
entre metáforas escorregadias
pontuando na tua poesia
os sinais da tua encenação


força da palavra

as palavras são faíscas
incendeiam, tiram lascas
servem para desvendar
ou recobrem feito cascas
falam de tudo o que há
no peito, alma e na mente
daquilo que circunscreve
das coisas que vão surgir
acontecimentos passados
e mesmo das fantasias
mas quando a palavra cala
dá-se à luz a poesia


12.7.04

Choro bêbado

A reprodução de uma pintura qualquer olhava-o torta na parede. Cobrindo as marcas do velho retrato que jazia no porão. Deixara-o lá como a exorcizar as lembranças. A casa ainda guardava o cheiro dela. Estava inteira na sua solidão. A garrafa vazia sobre a mesa lembrava-o da última noite. O filete de sangue no canto da boca. O corpo encolhido no chão. O choro baixo guardando a vergonha. No dia seguinte, apenas o vazio. Não havia sequer um bilhete. Nem as roupas. Nem os santos pintados à mão. Nem a velha mala sem tranca. A casa encheu-se apenas do seu choro bêbado. E das saudades que faziam dele uma sombra sobrevivente.


8.7.04

estrofe caótica

meu verso
pensamento cifrado
que já não entendo
angústia que impele à fuga
veneno que aduba o chão
e faz germinar o inverso
no solo do coração
resposta sem pergunta
estrofe temporã
desfeita em fruto estéril
uma mordida maçã


7.7.04

Laços em nós

Ao perder-me em ti entreguei-te
meus desejos indecentes
os sabores acri-doces dos meus topázios reluzentes
Ao perder-te em mim entregaste-me
tuas fantasias enclausuradas
nos bêbados desvarios de falsa pedra marchetada

Ao nos perdermos
em nós
construimos
uma nova história

Ao perder-me de ti
perdi pedaços de mim
porções servidas nos desvarios da tua luxúria
Ao perder-te de mim
entraste em transparência
perdeste o reflexo da minha indecente loucura

Ao nos perdermos
de nós
destruímos
uma velha história

E o adeus revelou o faiscar da minha vida em ebulição


5.7.04

destino

destino é um lugar
o único porto seguro
onde os navios devem aportar
somos todos naus em alto mar
tripulados por grumetes marinheiros
ansiosos por enfunar as velas
zarpar em aventuras
mas como é próprio dos meninos
nos cansamos dos brinquedos
aspiramos novos mares
singrando singulares
buscamos o plural
queremos companhia num momento
e noutro desejamos solidão
as nossas rotas não traçadas
aguardam pela nossa decisão
porque ao avançarmos mar-adentro
já vamos intuinto tantos portos
de qualquer jeito navegamos
com plano e rumo certo
ou sem nenhuma direção


2.7.04

Viagem sem destino

...viajar no teu desejo
entrar numa voragem de emoção
reinaugurar cada reentrância
agonizar a cada sensação
entregar-te os meus côncavos
alvoroçar o teu tesão
enlouquecer os meus gestos
umedecer a tua satisfação
explorar os teus convexos
entrar na tua dimensão
introduzir-te na minha volúpia
inverter a tua direção
abrir chagas no teu corpo
ser-te nova cicatrização
entregar-me à tua boca
e morrer na vertigem sem destino da minha própria levitação...


1.7.04

viagem e destino

todas as minhas viagens
um único destino
o teu espaço sideral
que contêm tudo o que sou
a minha órbita estelar
conheço os teus poros
e conheço teus humores
viajo no teu corpo
em peripécias infantis
galgando os teus montes
teus vales delirantes
me finjo ameaça
e em cortinas de fumaça
te perco toda em mim
e escuto o teu silêncio
me afundo em dormências
e é bom que seja assim
felicidade nominada
no percurso desta estrada
que construimos juntos
nas saliências e reentrâncias
um do outro
até o fim