15.10.07

deserto

tem dias dentro
ao se levar um fora
que tudo escurece
e os sentidos fogem
então pipocam porquês
sem interjeições
tudo é reticência...
sentimento irado
louco alienado
carente de fazer dó
sustenidos e bemóis
ouvido em caracóis
bramindo feito mar
não é só desespero
a ânsia inexprimível
grito amordaçado
sufocando a pressa
tanto divagar
nas culpas serenas
dum árido coração
que só faz chorar...


10.4.05

De boca e de vida


Perder-se em sua boca era tudo que queria. Quando ainda acreditava em amor.
Um dia sua boca se uniu à dele. Entregou-se inteira a ela - a boca dele. Um dia. Quando ainda acreditava em amor.
Hoje acredita nos dentes perpetuados em volta dos mamilos. Nas manchas de sangue no colchão. Na dor que se esconde na alma. No sorriso que não chega aos olhos. No corpo que entrega a quem der mais.
E na boca que se fechou para outras bocas.


13.1.05

vale-um-conto?!

A culpa não foi de Eleonora. Sabe quando a pessoa se encontra no lugar errado, na hora errada e com a pessoa errada? Lugar errado?!: o Hotel Netuno Blues. Hora errada?: 8 da manhã. Quanto à pessoa errada - talvez seja melhor examinar isso mais a fundo - mas, enfim, tratava-se de Alfredo, seu ex-marido, atualmente amasiado com Justine.
Eleonora, definitivamente, é aquele tipo de mulher que se dá ao respeito. Empregada registrada no quadro de funcionários do hotel - na função de camareira, ganha a merreca de 540 reais por mês e cumpre uma jornada diária mínima de 12 horas e tem que caprichar muito pra conservar o emprego, principalmente no chamado período de experiência próximo de concluir. Uma hora e meia depois de chegar ao serviço, lá estava ela atendendo ao chamado urgente do quarto 503 que reclamava sobre uma porta de banheiro travada. Que o primeiro nome do hóspede informado pela portaria lhe despertara emoções contraditórias não podia negar. Mas que ele fosse o Alfredo - ela o chamava pelo diminutivo "Dinho", isso nunca poderia imaginar. Afinal devem existir milhares de Alfredos na cidade e o sujeito em questão, tinha se mudado para o Rio desde a separação de ambos. Mas não é esse o fio condutor da estória. O que importa é que tampouco Alfredo jamais poderia imaginar que sua formosa ex, fosse agora uma humilde servente de um hotel 3 estrelas. Recém saído do banho lembrou que no bolso da calça que havia ficado no banheiro estavam todos os seus documentos, dinheiro e as anotações de endereços dos clientes a visitar naquele dia calorento. Meio a contra-gosto aceitara que Justine estivesse com ele em São Paulo aquele dia - apesar do contratempo que isso causava aos seus compromissos de vendedor. Mas ela já ligara do aeroporto e portanto logo deveria chegar ao hotel. Só concordara com essa vinda para não criar dificuldades com Justine, que tirando o ciúme doentio e algumas atitudes intempestivas, era de resto uma excelente companheira. Nesse quesito quase podia se equiparar a Eleonora. Ah Eleonora!... Mas esta já fazia parte do passado. Boas lembranças, alguma saudade - mas algo definitivamente morto e enterrado. O relacionamento durara 16 anos e sem que se soubesse exatamente os porques, - terminara por pura inanição e então ambos decidiram trilhar em solo suas vidas. Nem os dois filhos já adolescentes pareceram sofrer maior abalo porque não tendo visto nenhum atrito grave entre os pais, para eles era como se aquele casamento não tivesse sequer se dissolvido. Em todo caso, ficaram com a mãe e viam o pai com alguma regularidade. Visitavam-no mesmo, esporadicamente, no Rio de Janeiro para onde se mudara. Eleonora que recebia a pensão de mil reais não estava dando conta das despesas e resolvera procurar um emprego pra reforçar o orçamento. Os garotos também tinham arrumado um empreguinho pra sustentarem seus gastos pessoais e a vidinha ia sendo levada dessa forma. Mas Eleonora não era de dar o braço a torcer e contar pra todo mundo que agora era camareira - tinha praticamente concluído a faculdade de filosofia e a respeito de qualquer dependência sua em relação ao gênero masculino ela era dotada de uma retórica cartesiana e uma prática platônica. Ou seja, para ela homem doravante, só em sonhos. E o homem dos seus sonhos jamais deixara de ser Alfredo. Isso descobrira algum tempo depois da separação... mas em relação a isso já não havia nada mais a fazer. Além do que o orgulho não a deixaria jamais confessar tal fragilidade. E já estamos novamente descarrilhando o trem da estória... Pra resumir: Alfredo deixou a porta aberta para Justine entrar assim que subisse até o 5º andar e foi tentar de novo desemperrar a fechadura da porta do banheiro, não sem antes voltar a reclamar na portaria e pedir a assessoria de alguém pra ingrata tarefa de resgatar seus pertences. Enquanto - de costas para a entrada - fuçava desesperado tentando abrir a porta, Eleonora, sem reconhecê-lo aproximou-se e juntos começaram a forçar o fecho enguiçado. Nenhum conversa trocaram e depois de dois ou tres minutos de inútil tentativa ele acabou se irritando mais do que já estava - deu um passo atrás e avançou com os ombros à porta. Porta de banheiro de hotel geralmente não é lá essas coisas e com aquela não foi diferente. A tranca cedeu, a porta abriu e ambos foram juntos ao chão - desesperadamente procurando algo em que se segurar. Não encontrando nada melhor acabaram se engalfinhando sem querer um no outro. Se o non sense da situação já não estivesse no limite do absurdo - pior ficou quando ambos finalmente se reconheceram e antes mesmo que pudessem esboçar qualquer reação - eis que surge à porta principal - imaginem quem... - acertou quem imaginou Justine. E não foram precisos mais que 10 segundos para que o ciúme doentio de Justine encaminhasse sua fértil imaginação a deduzir o que deveria estar se passando. Seus olhos doces se injetaram de sangue, ela arrancou a toalha úmida que envolvia a cintura de Alfredo - deixando-o boquiaberto e nu e com a mesma toalha aplicou uma tunda em Eleonora que se abaixava procurando fugir dos golpes. Nenhum dos dois ex tentou explicar qualquer coisa a Justine. Ambos sabiam que seria absolutamente inverossímil qualquer argumento. Justine virou-se bufando e bateu violentamente a porta do quarto ao sair dali - e não só dali - mas também da vida de Alfredo para sempre... Marido e Mulher - afinal nem o divórcio ainda tinha saído - se olharam envergonhados - mas sem nenhuma acusação um ao outro. Ele ainda estava bonitão ela pensou intimamente e sentiu aquele mesmo antigo arrepio percorrer-lhe a espinha ao ver de novo à sua frente um homem nu - o seu homem - depois de 22 meses e 15 dias - ela contava e recontava milimetricamente o doloroso tempo de separação. Alfredo, mesmo enrubescido pela vergonhosa situação, percorreu Eleonora dos pés à cabeça e não pode deixar de admirar a sua beleza ainda intacta e apetitosa. Eleonora parecendo não acreditar no que via e sentia, fechou os olhos e apertou-os chacoalhando a cabeça por um breve instante e percebeu em seguida os braços de Alfredo enlaçando-a com suave firmeza. Não pode e nem quis esboçar qualquer reação. No instante seguinte seus lábios se tocaram e sentiram novamente aquele mesmo fogo da paixão que os consumira no início do relacionamento. Nenhum dos dois sabia naquele instante como seria o momento seguinte, o dia seguinte, a vida que seguiriam - mas ambos pareceram abrir mão do comando naquela situação inusitada. Seguir o instinto pareceu-lhes mais sábio. Sem qualquer plano e sem nenhum projeto, apenas amaram-se daquela forma incandescente de dois amantes inconsequentes, tendo unicamente a luz do sol por calorosa testemunha...


PS.: esse texto é pura ficção e qualquer semelhança com nomes, lugares e situações não passa de coincidência. Publiquei-o originalmente no meu blog "H@ Vida Depois dos 40", em 28/02/2003


10.1.05

linhas e anzóis

quisera fechar-me em conchas
mas uma invasão sutil
inundou-me a alma
e transbordei de afetos
seria uma mulher
seria um ser marinho
sereia?!...
adentrou-me à veia
causando rebuliços
reviravoltas e náuseas
rompeu o meu completo auto-domínio
e dominado sigo intenso
respiro à liberdade extenuado
o sangue circulando em frenesi
refém do teu perfume e fascinado
em tuas mãos a linha, o anzol
e eu todo contente do outro lado
fisgado feito um mero lambari


7.1.05

Zé dos Peixes

Muitas vezes, em minhas pescarias despretensiosas pude admirar a paciência do velho pescador. Costumava observar a sua despojada exposição ao causticante sol-a-pique. Acho que não fazia caso do calor porque raramente eu o vi pescar nas prazeirosas sombras das árvores não muito frequentes do Panema. Usava apenas um chapéu de palha por proteção e roupas rotas pelo intenso uso. Vez em quando fisgava um lambari, um tambiú, um mandizinho chorão. Nada que fizesse volume no bornal surrado. Nesses momentos seu corpo se retesava na barranca do rio e se percebia claramente o seu prazer à caça dos minúsculos peixes fisgados. Não soube muito sobre ele, a sua atenção à pesca não lhe permitia entabular grandes conversas beira-rio, o seu mais frequente habitat. Gostava que o chamassem simplesmente 'Zé dos Peixes'. Era viúvo e tinha 3 filhos que moravam na cidade e que raramente o visitavam na fazenda onde ele estivera morando desde a mais tenra infância. No último final de ano, cumprindo a sua rotina diária, ele foi ao rio Paranapanema para a sua pescaria miúda. Pelo volume já mau-cheiroso do seu bornal, aquela parece ter sido uma das melhores pescarias do ano. O rio andava meio repontado e muitos bagres foram fisgados. Não se sabe exatamente como aconteceu, mas ele foi encontrado logo de manhã, sentado num dos seus lugares prediletos na barranca do rio, em estado de rigidez cadavérica. Supõe-se que tenha morrido na tardinha da véspera. Pela sua expressão - um esboço de sorriso - é muito provável que tenha fisgado um daqueles lépidos peixinhos prateados ao dar o seu derradeiro suspiro. Descanse em paz, seu Zé dos Peixes.


6.1.05

calada

certa palavra ouvida
não foi dita nem pensada
pois morreu dilacerada
antes de ser concebida
nunca será pronunciada
foi velada no silêncio
e jaz quieta na calada


30.12.04

Vôo sem asas

O sol morre lentamente. Lentamente morre em mim o brilho do encanto. A tarde ganha cores de melancolia. Saudades do que ainda não vivi. O vazio na alma exige um novo renascer. Teimo em esperar. Mais um dia. Mais dois ou três. Esperança sem asas. Mas ainda esperança. Fecho os olhos. Viro lembranças. Renascerei. Quando arrancar do calendário as tardes de dezembro.


11.12.04

Agora Cínica

Ergue um pouco a saia.
Ajeita a blusa pro ombro ficar à mostra.

Na bolsa, o necessário:
Batom, delineador, o velho pente desdentado,
Um OB para a emergência,
O celular descarregado
Em chamadas não atendidas.

Na cabeça leve demência
Estanca qualquer pensamento.

No coração a ausência
De antiga e remota repulsa.

É só ventre.
Este sim pulsa tomado pela urgência.

Respira fundo,
Ensaia,
Chacoalha as ancas,
Sorri.

De lirismo nem lembra mais.
Aprendeu a ser arguta.

Doravante só busca o prazer.
Desce a rua resoluta
e
Se ao voltar trouxer revide
Terá sido absoluta.



Adélia Theresa Campos
10/12/04


14.11.04

Distância


Ele me falou do sonho
não ouvi
não percebi
não entendi
Há tempos estou acordada


11.9.04

Flagrante

Ela descia a rua pensando no seu destino ingrato. De repente o pé vira e a dor tira-lhe o fôlego.
Não! Aquilo não era destino de um ser humano! Levantar às cinco, sair pela rua escura às seis e quebrar o pé do nada! Definitivamente iria voltar para cama.
Sentada na calçada, pés nas mãos, lágrimas rolando no rosto, ela era apenas dó de si mesma.
E o atestado? A cama não justificaria sua falta.
Buscou na memória o que havia dentro da bolsa. Tudo menos grana. Nada de táxi.
Levantou-se e deixou-se ir mancando.
Lembrou do ex-marido e maldisse seu orgulho. Para ele não ligaria.
Não havia namorado. Apenas companheiros eventuais de sexo. Pinto amigo.
Às vezes a solidão virava inimiga.
Mas sentir-se ela mesma valia a dor no pé. E valia a dor na alma.
Continuou descendo a rua.
Mancando.


19.8.04

Retalhos de felicidade

Horizonte azul
Chuva nos cabelos
Banho de estrelas
Cheiro da manhã
Beijo de mar
Flores no caminho
Carinho inesperado
Sorriso de criança
Mãos que se estendem
Confiança no amanhã
Saudade do futuro
Coração sorridente
Amor ao amor


17.8.04

plenitude

felicidade é a junção do querer e o ter
quando se encontra alguém
somado a outro alguém
formando um novo ser
plena e nova pessoa


2.8.04

Tempo das flores

Há dias em que o presente nos cai como flores de ipê colorindo a calçada.
O desenho é lindo. A delicadeza das pétalas nos faz ter medo de pegar a flor.
Mas estão ali para serem pisadas. Por pés desavisados ou por almas insensíveis.
E enquanto olhamos o desenho colorindo o chão, o tempo passa.
O presente vira passado. As flores murcham ou são pisadas.
E a contemplação vira lamentação.
As flores não foram colhidas e o tempo não volta mais.
As marcas no chão viram esperança de um novo reflorir.


21.7.04

Felicidade sonhada

Ontem senti-me embalada
Lacrada com laço de fita
Pronta para ser presenteada
 
Vida pulsava no presente:
amor latejante
carinhos vicejantes
desejos escaldantes
 
A espera fez-se estrada comprida
Acordei embalagem sem vida
A felicidade foi apenas sonhada


15.7.04

palavra vazia

tua palavra
(trans)bordando poesia
germinou fértil
na alma em reticências
inclemente
teceu texto entre vírgulas
coseu sonhos sem acentos
recriou adjetivas fantasias
até que descoberta
caiu substantiva
nas surdas linhas
da vocativa desilusão
e agora jaz subordinada
entre metáforas escorregadias
pontuando na tua poesia
os sinais da tua encenação


força da palavra

as palavras são faíscas
incendeiam, tiram lascas
servem para desvendar
ou recobrem feito cascas
falam de tudo o que há
no peito, alma e na mente
daquilo que circunscreve
das coisas que vão surgir
acontecimentos passados
e mesmo das fantasias
mas quando a palavra cala
dá-se à luz a poesia


12.7.04

Choro bêbado

A reprodução de uma pintura qualquer olhava-o torta na parede. Cobrindo as marcas do velho retrato que jazia no porão. Deixara-o lá como a exorcizar as lembranças. A casa ainda guardava o cheiro dela. Estava inteira na sua solidão. A garrafa vazia sobre a mesa lembrava-o da última noite. O filete de sangue no canto da boca. O corpo encolhido no chão. O choro baixo guardando a vergonha. No dia seguinte, apenas o vazio. Não havia sequer um bilhete. Nem as roupas. Nem os santos pintados à mão. Nem a velha mala sem tranca. A casa encheu-se apenas do seu choro bêbado. E das saudades que faziam dele uma sombra sobrevivente.


8.7.04

estrofe caótica

meu verso
pensamento cifrado
que já não entendo
angústia que impele à fuga
veneno que aduba o chão
e faz germinar o inverso
no solo do coração
resposta sem pergunta
estrofe temporã
desfeita em fruto estéril
uma mordida maçã


7.7.04

Laços em nós

Ao perder-me em ti entreguei-te
meus desejos indecentes
os sabores acri-doces dos meus topázios reluzentes
Ao perder-te em mim entregaste-me
tuas fantasias enclausuradas
nos bêbados desvarios de falsa pedra marchetada

Ao nos perdermos
em nós
construimos
uma nova história

Ao perder-me de ti
perdi pedaços de mim
porções servidas nos desvarios da tua luxúria
Ao perder-te de mim
entraste em transparência
perdeste o reflexo da minha indecente loucura

Ao nos perdermos
de nós
destruímos
uma velha história

E o adeus revelou o faiscar da minha vida em ebulição


5.7.04

destino

destino é um lugar
o único porto seguro
onde os navios devem aportar
somos todos naus em alto mar
tripulados por grumetes marinheiros
ansiosos por enfunar as velas
zarpar em aventuras
mas como é próprio dos meninos
nos cansamos dos brinquedos
aspiramos novos mares
singrando singulares
buscamos o plural
queremos companhia num momento
e noutro desejamos solidão
as nossas rotas não traçadas
aguardam pela nossa decisão
porque ao avançarmos mar-adentro
já vamos intuinto tantos portos
de qualquer jeito navegamos
com plano e rumo certo
ou sem nenhuma direção


2.7.04

Viagem sem destino

...viajar no teu desejo
entrar numa voragem de emoção
reinaugurar cada reentrância
agonizar a cada sensação
entregar-te os meus côncavos
alvoroçar o teu tesão
enlouquecer os meus gestos
umedecer a tua satisfação
explorar os teus convexos
entrar na tua dimensão
introduzir-te na minha volúpia
inverter a tua direção
abrir chagas no teu corpo
ser-te nova cicatrização
entregar-me à tua boca
e morrer na vertigem sem destino da minha própria levitação...


1.7.04

viagem e destino

todas as minhas viagens
um único destino
o teu espaço sideral
que contêm tudo o que sou
a minha órbita estelar
conheço os teus poros
e conheço teus humores
viajo no teu corpo
em peripécias infantis
galgando os teus montes
teus vales delirantes
me finjo ameaça
e em cortinas de fumaça
te perco toda em mim
e escuto o teu silêncio
me afundo em dormências
e é bom que seja assim
felicidade nominada
no percurso desta estrada
que construimos juntos
nas saliências e reentrâncias
um do outro
até o fim


29.6.04

metáfora

o cântaro e a fonte
encontro singular
ele oferece o seu vazio
e ela a sua plenitude
depois o cântaro se vai
mas volta novamente
na troca intermitente
formando estranho par
um dá eternamente
e o outro - indecente
se embebe sem parar
existem pares assim
também no universo real
que subsistem inclementes
até o pote se quebrar


Um história qualquer

Minha alma foi teu consolo
onde derramaste tuas lágrimas
procuraste tua segurança
clareaste teus escuros
Meu corpo foi teu país
onde hasteaste tua bandeira
traçaste tuas fronteiras
e encontraste tua luz
Entreguei-te minha esperança mapeada
em cada linha do meu corpo
em cada nuance da minha alma
Não traduziste minhas marcas
não refletiste nos meus verdes
não emergiste nos meus sonhos
A luz se apagou
meu corpo se fechou
minha alma se rendeu

Dei-te adeus,
só meu sonho não percebeu


25.6.04

Apenas amor

Alcance-me com teu abraço
Aperte-me com tua fúria
Faça-me escrava do teu querer
Torne-me incoerente
Inconstante
Insana
Vire-me pelo avesso
Corte as minhas amarras
Empreste-me asas
Para jamais deixar de ser
Apenas amor


ansiedade

coração partido
de saudade ingrata
não, não houve ruptura
eu não a conhecia
e me deleitava na expectativa
de encontrá-la ao menos em delírios
os olhos ressequidos de arregalar ao vulto seu
que é o colírio e linimento
minha angústia e meu tormento
me vejo dissecado
e alguns pedaços já desgrudam de mim
aspiro sua água e o seu leite, o sangue e seu azeite
me hidrate, esbanje e submerja
me livra dessa fome e dessa sede
até que me embeba do seu mel

(meu post de 01/10/02 no blog Aos 4 Ventos)


24.6.04

fusão

sem querer foi sendo
adentramos sem planos
e quando percebemos
até o fugir tentamos
mas não conseguimos
e nos embrenhamos
cada vez mais fundo
em mútuos oceanos
e ao submergirmos
nunca mais voltamos
agora não sou
e também não és
nós apenas somos


23.6.04

Silêncio do distrato

Ele, ao lado esquerdo da mesa. Ela, à sua frente. Entre eles, um contrato. A vida dele estava naquele contrato a ser assinado. A vida dela estava em outro contrato já assinado. A vida deles dependia de mais uma assinatura. Dois anos no interior do Pará era o passaporte que ele precisava. Dois anos no interior do Pará seria o fim da carreira dela. Ela o olhou nos olhos. A decisão já fora tomada. Levantou-se e deu-lhe as costas. Com mãos firmes ele assinou sua nova vida. Em silêncio ela foi dormir no quarto do filho. Em silêncio ele começou a fazer as malas. No dia seguinte não haveria a vida deles. Haveria ele. Haveria ela. E haveria o filho dela. Do amor, apenas o silencioso distrato.


22.6.04

Palavra sem semente

Na definitiva mente
a definitiva palavra
não tem sabor
não tem cor
semente
crua
pobre
demente
Definitivamente
na definitiva mente
a palavra sem semente
é Amor


21.6.04

alça de mira

Artesão primitivo da palavra
Tateia e ousa rumos impensados
Peito aberto arfante exibido
Tensão do arco
Há outras miras na aljava
São apenas um: arqueiro e seta
Retesa ao máximo dispara
Singram sangrando o ar rompido
E assesta a lança o coração partido
Verte a lava e o sangue avermelha a tez
Na pele desnuda extrema palidez
É a morte
O grito e o silêncio
Sina da vida, sorte
Já não existe dor
Ao fundo ouvem-se lamentos
Primeiro plano latente
Algazarra infantil indiferente
E no embaçado olhar defunto
Jaz inútil a última das lágrimas
Fim decadente que não cabe
Revolve as cinzas mal acaba tudo
E a esculpida palavra expressa
Recomeça ao cinzel miúdo

(ps. transcrito do meu blog
H@ Vida Depois dos 40
publicado em 02/12/02)


20.6.04

Poeta de um tempo perdido

Pasta debaixo do braço, ele se arrastava ladeira acima. Outra vez seus originais eram recusados. Poesias que ele parira com amor. Eram suas companheiras de muitas noites solitárias.
As recusas eram sempre gentis, mas os olhos que recusavam mostravam completa indiferença. E um certo desinteresse pela história que ele ajudara a construir.
Ele se sabia contundente. Sua vida sempre fora de contundências explícitas. Doía-lhe ainda pensar nos companheiros mutilados. Nas companheiras sodomizadas. Nos becos onde dormira tantas vezes. Nos gritos que eram calados pelo medo. Nos olhos que sonhavam com uma liberdade utópica.
Sua poesia era ele. Havia um certo lirismo, sua alma sempre festejara a vida. Mas havia sangue. Havia lágrimas. Havia amor. Havia morte. Jamais negaria a si mesmo e a sua história.
Sentia-se poeta. Mesmo que apenas ele se soubesse poeta. A poesia seria outra vez guardada até que outra vez ele criasse coragem para libertá-la.
O poeta não morreria. Apenas descansaria para criar vida nova.


19.6.04

parceiros & parceria

"Quebro o rito e o ritmo, mas faço uma justa homenagem a Luis Tarciso, a quem sequer posso chamar de parceiro, posto que é meu mestre..." Regis

Peço desculpas a todos os leitores mas não pude evitar de manter a quebra do rito e ritmo iniciada pelo Regis e vou me pronunciar sobre isso ainda uma vez - e prometo que depois vou apenas prosear e poetar por aqui.
Amigos Regis, Loba e Jeanete. Aqui somos todos proseadores e poetas. Por isso não me deixem assim encabulado. Relutei muito em aceitar ser chamado poeta até que me identifiquei completamente com a perfeita definição de Pessoa para quem o poeta é um fingidor. Desde então me fiz poeta e armado de uma tosca poesia vou brandindo palavras às vezes dissonantes, escrevendo sobre a minha realidade ou dissertando sobre minhas fantasias. Mas sou apenas um primitivo, um leigo e neófito nesse mundo virtual e tão rico de pessoas maravilhosas como vocês. Então pra mim, o maior ganho é esse contato e interação que a internet nos permite. Definitivamente não sou mestre - me alegro muito se puder ser admitido como um de seus pares. Cada um de vocês tem um encanto característico e único - os escritores e os leitores que nos brindam com sua audiência. Não quero ser e não sou ingrato, mas não me sinto confortável com essa distinção imerecida - nunca fui mestre e nem serei - e, reafirmo, a grande distinção para mim é a de ser aceito e tratado como um dos seus pares.
Um fraternal abraço
Tarciso


17.6.04

Amor solitário

Sinto-te em mim. O desejo modela teu corpo na minha saudade atemporal. Cubro-me com os beijos que tua boca me negou. Meus braços se movem num abraço que me circunda. Sinto-me aos poucos. Meus sentidos brilham intensamente nas entrelinhas da realidade. Trago-te para mim.Tenho-te novamente. Entrego-me à tua lembrança e sou carinhos que percorrem fios e umidades. Minhas mãos, amante lésbica, deslizam pela pele sedenta. Deixo-me moldar por dedos ávidos que passeiam doidamente por meu corpo. Sinto a suavidade quente da tua língua descobrindo as minhas cavidades. Redescubro o teu prazer. Desmancho-me em líquidos e a vida volta a me preencher. Estou viva. Já posso chorar.


plenitude

a pele é de veludo
tépida e sedosa
gostosa de tocar
expele aquela luz suave
expande as sensações
entontece a visão
num halo envolvente
e já não se vê nada além
dois corpos castos e desnudos
em posição de amar no chão
entregam-se aos caprichos da libido
nada é proibido
tudo é sedução
o gosto
o cheiro
a troca dos gemidos incontidos
e o gozo longamente adiado
é finalmente consentido
explode em lavas
e tremores
olores conhecidos
invadem o recinto
abafam os sentidos
na ânsia do prazer
ganhando ao perder
um ser no outro ser
minutos infinitos
de paixão